domingo, 7 de março de 2010

Que adulto estamos a criar?

Quando um aluno entra na escola às 8h e sai às 20h, tem pai/mãe em média 3h por dia. Que geração estamos a criar?

Contra a escola-armazém
Daniel Sampaio

Merece toda a atenção a proposta de escola a tempo inteiro (das 7h30 às 19h30?), formulada pela Confederação Nacional das Associações de Pais (Confap). Percebe-se o ponto de vista dos proponentes: como ambos os progenitores trabalham o dia inteiro, será melhor deixar as crianças na escola do que sozinhas em casa ou sem controlo na rua, porque a escola ainda é um território com relativa segurança. Compreende-se também a dificuldade de muitos pais em assegurarem um transporte dos filhos a horas convenientes, sobretudo nas zonas urbanas: com o trânsito caótico e o patrão a pressionar para que não saiam cedo, será melhor trabalhar um pouco mais e ir buscar os filhos mais tarde.
Ao contrário do que parecia em declarações minhas mal transcritas no PÚBLICO de 7 de Fevereiro, eu não creio à partida que será muito mau para os alunos ficar tanto tempo na escola. Quando citei o filme Paranoid Park, de Gus von Sant, pretendia apenas chamar a atenção para tantas crianças que, na escola e em casa, não conseguem consolidar laços afectivos profundos com adultos, por falta de disponibilidade destes. É que não consigo conceber um desenvolvimento da personalidade sem um conjunto de identificações com figuras de referência, nos diversos territórios onde os mais novos se movem.
O meu argumento é outro: não estaremos a remediar à pressa um mal-estar civilizacional, pedindo aos professores (mais uma vez...) que substituam a família? Se os pais têm maus horários, não deveriam reivindicar melhores condições de trabalho, que passassem, por exemplo, pelo encurtamento da hora do almoço, de modo a poderem chegar mais cedo, a tempo de estar com os filhos? Não deveria ser esse um projecto de luta das associações de pais?
Importa também reflectir sobre as funções da escola. Temos na cabeça um modelo escolar muito virado para a transmissão concreta de conhecimentos, mas a escola actual é uma segunda casa e os professores, na sua grande maioria, não fazem só a instrução dos alunos, são agentes decisivos para o seu bem-estar: perante a indisponibilidade de muitos pais e face a famílias sem coesão onde não é rara a doença mental, são os promotores (tantas vezes únicos!) das regras de relacionamento interpessoal e dos valores éticos fundamentais para a sobrevivência dos mais novos. Perante o caos ou o vazio de muitas casas, os docentes, tantas vezes sem condições e submersos pela burocracia ministerial, acabam por conseguir guiar os estudantes na compreensão do mundo. A escola já não é, portanto, apenas um local onde se dá instrução, é um território crucial para a socialização e educação (no sentido amplo) dos nossos jovens. Daqui decorre que, como já se pediu muito à escola e aos professores, não se pode pedir mais: é tempo de reflectirmos sobre o que de facto lá se passa, em vez de ampliarmos as funções dos estabelecimentos de ensino, numa direcção desconhecida. Por isso entendo que a proposta de alargar o tempo passado na escola não está no caminho certo, porque arriscamos transformá-la num armazém de crianças, com os pais a pensar cada vez mais na sua vida profissional.
A nível da família, constato muitas vezes uma diminuição do prazer dos adultos no convívio com as crianças: vejo pais exaustos, desejosos de que os filhos se deitem depressa, ou pelo menos com esperança de que as diversas amas electrónicas os mantenham em sossego durante muito tempo. Também aqui se impõe uma reflexão sobre o significado actual da vida em família: para mim, ensinado pela Psicologia e Psiquiatria de que é fundamental a vinculação de uma criança a um adulto seguro e disponível, não faz sentido aceitar que esse desígnio possa alguma vez ser bem substituído por uma instituição como a escola, por melhor que ela seja. Gostaria, pois, que os pais se unissem para reivindicar mais tempo junto dos filhos depois do seu nascimento, que fizessem pressão nas autarquias para a organização de uma rede eficiente de transportes escolares, ou que sensibilizassem o mundo empresarial para horários com a necessária rentabilidade, mas mais compatíveis com a educação dos filhos e com a vida em família.
Aos professores, depois de um ano de grande desgaste emocional, conviria que não aceitassem mais esta "proletarização" do seu desempenho: é que passar filmes para os meninos depois de tantas aulas dadas - como foi sugerido pelos autores da proposta que agora comento - não parece muito gratificante e contribuirá, mais uma vez, para a sua sobrecarga e para a desresponsabilização dos pais.

4 comentários:

Presépio no Canal disse...

Concordo inteiramente. No meu entender, deveria haver menos preconceito contra o trabalho em part-time. Este deveria ser uma opcao, quer para o pai, quer para a mae, de forma alternada, e em momentos especificos, por exemplo, quando sao mais pequenos. Na Holanda, e muito comum. Como e que o dinheiro chega? e simples. As festas de aniversario, por exemplo, sao em casa, vai so a familia, gastam pouco dinheiro na festa (famosa dupla tarte e cafe), decoram a casa de forma mais artesanal, e levam uns chocolatinhos para os meninos da escola (nao e habitual arrendar espacos caros e convidar toda a gente e mais alguma).
Os meninos passam mais tempo com os pais nos jardins publicos em vez de consumirem vorazmente jogos electronicos caros, ou nos centros comerciais, onde se tende a gastar mais dinheiro.
Nas ferias, opta-se mais pelo campismo.
Os trabalhos domesticos sao dividos por todos.
Nao se vai todos os dias ao restaurante e a maioria nem empregada domestica tem.
A vida e mais modesta em certos aspectos (sobriedade protestante ou calvinista) e mais virada para o contacto com as criancas (sao consideradas as mais felizes da Europa) em actividades simples, mais conectadas com a natureza e com a familia.
Enquanto nao se mudar os paradigmas, o quadro tracado ira continuar a ser o mesmo. Esta e a minha opiniao.
Beijinhos, No. Optimo texto!

Leonor Lourenço disse...

Muito obrigada por este teu post. Foi sem dúvida uma mais valia a este artigo. Muitos terão ficado a meditar no que disseste, inclusivé eu.
Beijinhos da Nô

Áurea disse...

Já somos duas Nô!!!
Depois de ler o teu texto, esse comentário está divinal...
BJO

Presépio no Canal disse...

Nos aqui nem subsidio de Natal temos, os impostos sao dos mais elevados da Europa, e por isso, ha que fazer melhor gestao do dinheiro. Pensas que aqui dao carros aos filhos quando fazem 18 anos? Nao. Eles vao trabalhar nas ferias para comprar a bicicleta. E uma vida mais simples. O holandes tambem poupa muito. E conhecida a quase obsessao por descontos e promocoes. Nos viemos para ca por causa da mentalidade. Coaduna-se mais com a nossa. Ha muita pressao para se gastar muito em Portugal. Aqui so agora se comeca a dar lembrancas no Natal (a festa maior e o Sinterklaas que nao podia ser mais simples e gira!) Podes ver nos meus posts. E continua a pedir a Deus para que nao venham para aqui grandes centros comerciais para estragar o pequeno comercio.
Sabes que o meu bloguito fez dois anos? Lancei um desafio para me dizerem qual o post ou tema que mais gostaram, mas foi pouco concorrido. Verdade seja dita que lancei no fds quando o blog e menos visitado, mas esqueci-me do dia, acreditas? Tenho andado com testes de holandes...
Beijinhos
PS: um dia que venhas a Amesterdao, visita o Vondelpark. Vais ver o que sao barbercus e festas de aniversario no maior jardim publico da cidade...temos que poupar, a vida nao esta para brincadeiras...