quarta-feira, 10 de junho de 2009

Considerações

A convite da organização da Feira do Livro, fui contar a minha história para um grupo de crianças que se encontrava na feira do livro. Entre estas e seus familiares, verifiquei estarem também presentes, adultos que se iam aproximando para usufruírem da história. De facto o conto tem destas coisas, levar os adultos assumir o seu encanto pelas palavras, pela fantasia, pela magia, um retorno agradável à sua infância.
Um pouco mais distante era observada por um homem que no dia anterior de bloco na mão desenhava a estátua de Nuno Alvares Pereira montado no cavalo.
Após terminado o conto aproximou-se. Perguntou se eu era escritora e se tinha sido eu a fazer as ilustrações. Elogiou, mas pareceu ficar ainda mais impressionado por eu ser educadora de infância pois, para ele, educar crianças, era muito difícil. Falou em Saint Exupery e que o meu livro o tinha remetido para o seu livro. Recordei que, curiosamente já alguém tinha dito que o meu traço em alguns quadros lembravam este ilustrador.
Percebi que não falava bem português e questionei-me se seria italiano ou espanhol, mas pela facilidade com que o entendia pareceu-me ser galego. Confirmou. Contei-lhe da minha ida a Lugo ao encontro de educadores e educadoras pela paz e quando eu disse que eles eram muito próximos da nossa cultura, emendou dizendo que eram a nossa cultura.
Convidei-o a sentar-se na mesa onde eu estava a promover o meu livro.
Explicou que era pintor, mas que sabia que era “persona non grata” por dizer o que pensava sem peias e pelo seu ar pouco cuidado. Depois de conversarmos um pouco pediu para fazer o meu retrato, dizendo que era oferta. Eu tive vontade de comprovar o seu talento.
Queixou-se que lhe tinham roubado o material de pintura, que tudo estava caro e já tinha vivido na rua, mas era para ele vital ter bons materiais para pintar e desenhar.
As pessoas olhavam-no com alguma desconfiança que eu decidi ignorar. O seu modo de vestir e de estar fazia dele um ser merecedor de maior atenção naquele espaço.
Começou a desenhar ao mesmo tempo que elogiava Mário Cesariny, um génio muito diversificado, falava do minimalismo, afirmava que temos bons poetas e referiu alguns deles portugueses, destacando Pessoa e partilhou o nome de alguns poetas galegos.
Ao lado um adulto bem vestido dizia ao amigo ter de comprar o “Diário de um Banana” enquanto eu me interrogava quantas daquelas pessoas que se cruzavam connosco saberiam quem eram estas pessoas de que ele falava.
Disse ainda gostar muito de Cruzeiro Seixas e que a melhor voz de Portugal era a Marisa. E assim fomos trocando impressões.
Entretanto pessoas aproximavam-se para observar o retrato, acenavam para mim indicando que estava a ficar um bom trabalho. Terminou e acabei por ter o arrojo que me faltava para divulgar o meu trabalho. Perguntei: -Alguém quer um retrato? Uma menina quis e o adulto que a acompanhava achando o preço agradável, aceitou.
Eu, uma arquitecta que entretanto chegou para também divulgar o seu livro, ali ficámos a conversar durante algum tempo sobre poesia, arte, cultura.
Disse-lhe que queria pagar-lhe o quadro, ele tinha referido várias vezes ao longo da conversa as suas dificuldades financeiras que não vou aqui detalhar e achei que era mais do que justo.
Não tendo comigo dinheiro fui ao multibanco. Ele acompanhou-me. Entrei na cabine do banco, uma senhora sorriu para mim ao sair, mudando bruscamente de expressão ao pousar com o olhar sobre o homem que me acompanhava. Percebi nela medo.
Ele entretanto referia que sabia que era marginal, que era pintor de rua, mas não gostou de ter visto no jornal “Pintor de rua vai estar….dia tal no sítio tal…”.
Paguei o meu retrato, agradeci o seu gesto, de oferta do retrato, só após uma pequena insistência concordou em aceitar enquanto se despediu de mim agradecido e seguiu o seu caminho.
Fiquei a olhá-lo de longe e pensei que há já algum tempo que no meio dos meus afazeres da escola e pessoais não tinha falado com tanta sintonia com ninguém. Lamentei não lho ter dito. É hábito esquecermo-nos de manifestar estas verdades…

4 comentários:

Edina Sikora disse...

Leonor...seu olhar foi além das aparências...
isso porque voce é uma pessoa sensível de verdade, com um coração bom. Tenho na minha adolescencia uma história assim...de um menininho todo sujo e esfarrapado que me acenou num dia de tristeza para mim.Marcou, ficou no meu coração...como um anjo vestido de menino para me alentar. bjs amiga

Leonor Lourenço disse...

Obrigada Edina.
Todos temos uma ou outra história semelhante, só que uns fecham logo a porta, outros abrem mas levam as situações com ligeireza, outros nem perdem tempo com ocorrências destas, outros têm a noção da fragilidade que existe em cada um de nós e de como nada é garantido nesta vida.
É esta a minha postura, sei o que fui e o sou o que tive e o que tenho,mas o futuro é uma incógnita. E é esta constatação que me aproxima mais dos outros.
As pessoas com visões semelhantes tendem a aproximar-se. Não é à toa que este texto lhe disse algo.
Um beijinho e continue a dar-nos a felicidade de podermos usufruir do seu talento
Leonor

Vitor Lopes disse...

Parabéns
Vejo com entusiasmo que actualizas o teu espaço com uma regularidade muito boa.
Fico contente.

Leonor Lourenço disse...

Obrigada. Deves fazer o mesmo se puderes. Nós gostamos das tuas fotos.

Leonor